Alejandro Iñárritu soçobra-nos desde sempre a um cinema não convencional, com a polarização da comunicação, narrativas com quebras de organização cronológica, câmaras desequilibradas pelas emoções e bandas sonoras verdadeiramente inspiradoras!
Amores Perros encontra-se submerso numa estética da brutalidade, de violência real e desconfortável numa narrativa fragmentada, diferente do mundo isotérico das 21 gramas da alma de cada um de nós, metaforizando o que perdemos e ganhamos durante o nosso percurso de vida, que nos compadece com a fragilidade da vida e embevece com a delicadeza de Naomi Watts. Babel, um grandioso momento do cinema, enaltecendo a inocência dos atos, galvanizando o mito bíblico, é um filme inefável e intemporal. Depois de fechar esta “trilogia da vida” onde a disparidade urbana, existencial e identitária está inculcada, somos brindados com Biutiful, um belo drama intenso familiar onde acompanhamos a arco de degradação de Uxbal, marcado pela sobrenaturalidade, suspense e, pela relutância indómita da partida.
Todo este cenário emoldurado pela singularidade do ethos, choque e moléstia que fazem perder a cor das fronteiras de sentimentos antagónicos, se modifica quando Iñárritu foge à sua zona de conforto e nos presenteia com uma maravilhosa comédia, mudando assim drasticamente todo o seu norte cinematográfico à qual não estávamos habituados. Birdman, uma verdadeira ópera gutural de entretenimento orquestrada com uma grande mestria, protagonizado pelo inebriante Michael Keaton, que vive na sombra que o assombra de uma antiga glória procurando incessantemente ser reconhecido pelas ovações teatrais. Envolvidos por este mundo absorvente, entre cortinas e corredores, é difícil estabelecermos uma destrinça entre a “vida real” e a encenada pelos atores, o que, antieticamente nos absorve e apaixona. Uma dicotomia, porém amorosa, entre a realidade e a ilusão onde o almejado se manifesta pela voz grossa e figura ubiquista de Birdman, o seu alter-ego sarcástico, indissociável de Riggan. Birdman é uma voz omnipresente que questiona todos os seus atos, retratando o mundo físico e palpável que o rodeia, tudo isto captado por uma câmara indiscreta que sequiosamente persegue todos os atores de forma sequencial. Um filme crítico a Hollywood, à Broadway alastrando-se para a indústria do entretenimento e, em especial ao ego singular e à definição de arte, fazendo-nos questionar a cada minuto qual a nossa relevância e missão individual no mundo. Desta vez não somos deliciados pelas mágicas e sensíveis mãos de Gustavo Santaolalla, que nos remexe o interior mais cavernoso e iluminado transportando-nos com tanta delicadeza para diferentes estados de espírito mas somos sim empurrados pelos frémitos das mãos fortes de Antonio Sanchez a um ritmo de baquetas esquizofrénicas mas que se silenciam para deixar brilhar as cenas de atuação.
Um banquete emocional agridoce, poético, portador de um âmago do tamanho da pupila desmesurada de Iñárritu, expurgado de pudicícia, transborda simbolismo, com um clímax maravilhosamente pessoal e complexo, faz-nos perscrutar silenciosamente o nosso sentido em analepse. Tudo isto com o toque indelével de um dos melhores realizadores de sempre, esperemos que este novo registo seja o crepúsculo de uma aurora futura!
Escreve, também, para o P3, noticiasportugalnews e para o seu blog.